segunda-feira, 29 de março de 2010

MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA: mudar, só para melhor

Pois bem, em seguimento do meu último texto sobre as questões ligadas ao MNA, transcrevo aqui um comunicado do actual director do museu sobre essa temática, difundido via Archport.

Entretanto, como sei que muitos dos leitores deste blog não têm uma relação de proximidade com o mundo arqueológico, espero que este assunto tenha motivado alguma reflexão.. Isto já não é só uma questão de Arqueologia.. É de Cultura, de Política, de Economia.. de Cidadania!
  

[esclarecimento apresentado durante as VIII Jornadas Anuais do ICOM Portugal, em 29 de Março de 2010]

MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA: mudar, só para melhor


Uma vez que foi anunciada a intenção de fazer transitar rapidamente o Museu Nacional de Arqueologia (MNA) para a Cordoaria Nacional (CN), destinando-se o espaço dos Jerónimos à ampliação do Museu de Marinha ou a um novo museu, o Museu da Viagem, julgo já ser altura de dizer o que penso sobre o assunto. A tal me conduzem os deveres que tenho para com os visitantes, o Grupo de Amigos do MNA, as comunidades científicas e museológicas a que pertenço e sobretudo para com a minha própria consciência pessoal. Vejo, aliás, que o tema mobiliza as comunidades da arqueologia, da museologia e do património e começou a interessar os media. Ainda bem, porque o futuro de uma instituição centenária desta natureza é um assunto de cidadania, que ninguém poderia esperar, muito menos desejar, ficasse escondido dentro de gabinetes.
Como tenho repetido noutras ocasiões (v. por exemplo Publico, 23-12-2006), não sou, em absoluto, contra a transferência do MNA para outras instalações. Pertenci a equipas que procuraram essas alternativas e elas chegaram a estar prefiguradas em sucessivos PDMs de Lisboa (Alto do Restelo, Alto da Ajuda, terrenos anexos ao CCB, etc.). Tendo falhado todas estas hipóteses, optei na última década – e com eu todas as direcções do Instituto de tutela - por estudar, primeiro, e depois propor projectos de arquitectura muito sólidos, da autoria de Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro, alicerçados em sondagens e estudos geológicos realizados sob supervisão do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), visando a ampliação do MNA nos espaços já ocupados nos Jerónimos. Estes estudos e projectos foram desde 1998 acolhidos por todos os governos que precederam a actual legislatura e chegaram ser formalmente adoptados por um primeiro-ministro, que anunciou o calendário da sua execução.
Não posso deixar de considerar ser pena que se deitem agora à rua as dezenas, ou porventura centenas, de milhares de euros assim gastos. Mas, enfim, se a opção é de mudança de instalações, então o que importa assegurar é que ela seja claramente para melhor. Não podendo ser para edifício novo, pois que seja para um edifício histórico prestigiado, bem situado e sobretudo adequado às necessidades de um museu moderno, mormente daquele que é um dos mais visitados do Ministério da Cultura, o que possui colecções mais volumosas e vastas e ainda o que tem maior número de bens classificados como “tesouros nacionais”. E já agora, quanto ao espaço deixado livre nos Jerónimos, que se execute nele um projecto cultural que realmente valha a pena e honre a Democracia.
Ora, devo confessar que, não obstante a atitude positiva que sempre tenho em relação à mudança, o espírito construtivo e colaborante a que minha posição funcional me obriga e ainda a esperança que depositei na orientação política traçada pela actual Ministra da Cultura, tenho agora dúvidas que estes desideratos sejam de facto assegurados.
Em Novembro e Dezembro passados, após reuniões tidas com a tutela do MNA e directamente com a senhora Ministra da Cultura, foi traçado um caminho que me pareceu e continua a parecer sério e viável, a saber:
-mandar executar estudos geotécnicos, sob direcção de entidade idónea (que a senhora ministra anunciou à imprensa ser o LNEC), garantidores da viabilidade e condições de instalação do MNA na CN; destes estudos resultariam as obras de engenharia que fossem consideradas como condições prévias a qualquer projecto de arquitectura;
-execução de um projecto da arquitectura arrojado, respeitador da Cordoaria (ela própria classificada como monumento nacional e merecedora de todo o respeito) e do programa museológico do MNA;
-afectação de toda a CN ao MNA, reconfigurado institucionalmente de modo a incluir alguns serviços de arqueologia do Ministério da Cultura que nele poderiam desejavelmente ter lugar;
-não instalação antecipada na CN de serviços do MC, de modo a que o espaço estivesse totalmente disponível para a execução do projecto de arquitectura; correlativamente, não havendo necessidade de ocupação da CN por parte da Cultura, não entrega adiantada à Marinha de espaços nos Jerónimos, mantendo aqui o MNA toda a sua capacidade operacional, até que pudesse ser transferido para a CN, em boa e devida ordem.
Nos últimos dois meses parece que toda esta estratégia foi abandonada, sem que se perceba muito bem porquê. Talvez apenas pelo que se quer fazer nos Jerónimos e não propriamente pelo interesse na melhoria do MNA. Importa recordar que a ideia de afectar o sector oitocentista dos Jerónimos em exclusivo à Marinha, de forma clara (ampliação do Museu de Marinha) ou encapotada (Museu da Viagem, colocado em instalações alienadas para a Marinha, bem diferente do que seria um tal museu antropológico e civilista, sob tutela exclusiva da Cultura), limita-se a ressuscitar o antigo projecto do Estado Novo, sob impulso do almirante Américo Thomaz, que teve golpe de finados quando o Conselho da Revolução, em Janeiro de 1976 (no rescaldo do 25 de Novembro e quando País corria o risco de uma deriva cesarista), entendeu publicar um decreto hoje risível, no qual se impunha a transferência para a Marinha de todos os espaços dos Jerónimos não afectos ao culto. É irónico que este projecto seja retomado agora, mas… é a vida. Na condição em que subscrevo este texto, apenas me cumpre assinalar esta entorse cívica. Todavia, na mesma condição, cumpre-me mais, cumpre-me denunciar a extraordinária situação para que um museu mais do centenário e um acervo tão vasto e estruturante para o País são atirados, tratados como meros empecilhos para que uma opção política de regime possa rapidamente ser executada. Em ditaduras terceiro-mundistas não se faria diferente.
Quanto ao edifico da CN o problema não é tanto político mas técnico e altamente complexo, fazendo todo o sentido os cuidados na sua abordagem, acima sumariados. Trata-se de uma proposta que tem meio século, ressurge ciclicamente e foi sempre recusada com base em pareceres técnicos credíveis. Mudaram entretanto as circunstâncias ? Talvez. Mas apenas se alguém com competência bastante puder agora garantir a inexistência ou o adequado controlo dos riscos sísmicos, de inundação, impacte de marés, etc. que são reconhecidos naquele preciso local (edificado sobre o estuário do rio Seco num local, “Junqueira”, que significa pântanos de juncos) e arriscam conduzir a uma catástrofe para o acervo histórico nacional que o MNA guarda. E se outro alguém garantir depois a mobilização dos meios financeiros suficientes para a profunda requalificação do quarteirão inteiro da CN, onde nalguns sectores se verifica uma quase ruína e noutros as coberturas são em telha vã, os pavimentos são irregulares, estão saturadas em sais marinhos, etc., etc. Ora, a única coisa que até aqui me foi apresentado em sentido tranquilizador, foi um parecer dado a título individual por um antigo técnico LNEC, certamente competente, mas que não responsabiliza mais do o seu autor. O Grupo de Amigos do MNA obteve estudo de outro técnico muito credenciado e que vai em sentido contrário; eu próprio recolhi pareceres de dois dos mais reputados especialistas portugueses em engenharia sísmica – e todos concordam em alertar para o risco efectivo e elevado que existe no local da CN.
Talvez assim se compreenda melhor porque atribuo a esta matéria tanta importância. Talvez se entenda porque não posso em consciência, neste momento, considerar como definitivamente adquirida a transferência do MNA para CN. E, por outro lado, também assim se possa melhor perceber porque considero inaceitável executar desde já o despejo de parte do MNA nos Jerónimos – situação que seria sempre anómala (e desnecessária, porque não existem agora pressões para colocar quaisquer serviços da Cultura na CN), porque o que faria sentido, conforme o acordado inicialmente, era que o Museu apenas desocupasse os espaços actuais quando mudasse de instalações, após as obras profundas de arquitectura a que a CN deverá inevitavelmente ser submetida.
Continuo, pois, a aguardar a apresentação pública de estudos que garantam a segurança do acervo do MNA na CN. Aguardo, logo depois, a abertura de concurso público ou o convite a arquitecto consagrado para desenvolver o projecto que se impõe, tudo isto sem esquecer os estudos urbanísticos da zona envolvente, de modo a precaver, e potenciar, o fluxo das várias centenas de milhar de pessoas que passarão anualmente a frequentar uma zona em que se irão colocar lado a lado os dois mais visitados museus do Ministério da Cultura.
No entretanto, o MNA continuará a servir da melhor forma que puder os seus utilizadores, no cumprimento do programa cívico que Leite de Vasconcelos concebeu e Bernardino Machado adoptou. As iniciativas públicas já tomadas em torno do futuro do MNA, com especial relevo para o espírito combativo demonstrado pelo nosso Grupo de Amigos e para os oferecimentos de activa solidariedade por parte de personalidades as mais diversas, das associações científicas e profissionais, das universidades e das autarquias, reconfortam-me e dão fé de que a sociedade civil não está adormecida.
Luís Raposo
Director do Museu Nacional de Arqueologia, 29 de Março de 2010.

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